por uma performance queer de são paulo



Por uma performance queer de São Paulo
por Ana Luisa Santos

antes eu conhecia São Paulo só de turista. Vinha e ficava loka de tanto ver exposição e rua e voltava para casa exausta, praticamente exaurida. Essa intensidade era interessante, mas nunca me fascinou exatamente. Eu não me visualizava morando em São Paulo. Mas depois aconteceram confluências que fizeram eu me abrir para a possibilidade de viver em São Paulo (inclusive porque as pessoas perguntam muito o que estou fazendo aqui e viver já é muita coisa).

Eu não imaginava que seria simples ou fácil, por uma série de motivos. Inclusive porque essa mudança, longe de significar uma ruptura com Belo Horizonte mas sim uma expansão, essa mudança se deu em um contexto de golpe com o retorno da ditadura no Brasil. Então, assim, eu imaginava que seria bem difícil e eu estava bastante triste, processando o luto de uma ingenuidade política que experimentei até então. A esse luto se somaram alguns outros como o fim de um profundo relacionamento afetivo-sexual e o o fim de um tipo de imaginação política que era possível até aquele momento. Somaram-se também a saudade das amizades de BH e a solidão que me abateu durante esse período. Abracei o exílio e o luto e não é fácil. São Paulo representou o treinamento de performer mais intenso que já me propus. Aqui experimentei um intenso grau de vulnerabilidade que se fez ainda mais agudo no contraste com a densidade fálica de São Paulo. Eu quase morri. Mas sobrevivi para contar. Busquei testemunhar o processo com uma série “VIRIL” de trabalhos (Espécie, Queda Livre, Viril, Tecnologias Anti-normativas, Camuflada – ver site www.anasantosnovo.com), além da produção de escrita para esse experimento SE TOCA:DEVIR MANUAL LÉSBICO.

Mas também busquei ajuda. Além da análise e da atividade física (que eu já iniciei em BH antes de mudar) eu procurei por espaços de estudo em muitos livros e cursos em São Paulo (SP é muito bom para estudar, já trabalhar eu não sei). Em São Paulo, tive oportunidade de pesquisar em cursos, oficinas, residências e seminários com Márcia Zanelatto, Amílcar Packer, Beatriz Lemos, Marcelo Carnevale, Jota Mombaça, Mônica Nador, José Fernando, Suely Rolnik, entre várias outras pessoas muito interessantes, com processos de trabalho e presenças valiosas. Conheci pessoas muito legais e me aproximei de pessoas de BH que vivem aqui. Mas para além desse investimento de atenção e curiosidade, procurei tentar perceber a cidade, tentar imaginar como pode ser viver em São Paulo.

Eu agradeço a possibilidade que tiver de viver na Lapa, em uma região muito real na zona Oeste de São Paulo. Esse deslocamento do centro me permitiu uma outra perspectiva da cidade e seus fluxos. Desenvolvi um trabalho junto a MIT-Sp na região da Cidade Tiradentes, onde está localizada a sede do grupo Pompas Urbanas e uma cooperativa de grupos de circo e de teatro que surgiu a partir das atividades de formação propostas pelo espaço. Essa experiência me mostrou um pouco de uma outra dimensão da região Leste de São Paulo. Procurei também conhecer um pouco do trabalho de Mônica Nador junto ao JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube na região Sul de São Paulo. Também fui a Paranapicaba e ao camping Simplão de Tudo, que fica na zona rural dessa cidade histórica. Fui ao Campo Limpo para assitir ao ensaio aberto de “Preto” da Cia. Brasileira. Fui ao Rio de Janeiro para participar do filme “As Mil Mulheres” e a Belo Horizonte algumas vezes para outros trabalhos. Fui a uma feijoada em uma casa na Serra da Cantareira, passando por Jaçanã, na reigão Norte da cidade. Ou seja, tentei não me concentrar no centro. E busquei margens potentes cheias de poros. Essa estratégia de deslocamento também me ajudou a pensar sobre o que poderia significar essa experiência de São Paulo, pelo menos em primeiro plano ou para uma pessoa que nunca tinha vivido nessa cidade anteriormente.

Em primeiro lugar, eu fiquei muito abalada com a densidade. São Paulo é muito denso, em vários sentidos. O pesquisador Jessé de Souza disse em uma entrevista sobre o seu novo livro que tem como tema o fenômeno da classe média no Brasil, que no país existem 800 pessoas muito, muito ricas, tipo a ideia da super elite no sentido tradicional. 800 pessoas. Dessas 800 pessoas mais poderosas no Brasil, um total de 600 pessoas estão em São Paulo. Mas esse é um dado. De uma dimensão de São Paulo. Porque eu não conheci essas pessoas nem circulei exatamente pelos espaços que elas ocupam. O que eu experimentei de densidade veio, principalmente, da percepção do clima energético e do trânsito na rua e no transporte público. Não só pela quantidade impressionante de pessoas e veículos, mas pelo ritmo dos fluxos. E essa velocidade densa age sobre os corpos e as presenças de todxs. Eu mesma não sou mais a mesma. Mudei o jeito do cabelo, dos óculos, das roupas, a forma de andar, o boné que eu uso para sair na rua, quando saio, quando preciso sair. Porque sair, me deslocar pela cidade passou a ser uma situação que exige uma disponibilidade ímpar.

Esse tipo de densidade veloz atravessa os afetos também. Tem uma praticidade que não deixa muito espaço para observar a possibilidade de acontecimento. Não dá tempo de compartilhar. Então é possível observar no trem lotado de solidões e celulares, fones de ouvido e comércio ambulante. Mesmo os eventos de possibilidade de encontro, como os eventos artísticos, por exemplo, mesmo esses lugares ficam atravessados por essas dinâmicas de pragmatismo ou consumo. Outro dia uma amiga compartilhou um vídeo: “Networking atrapalha a amizade”. Os vínculos são raros e em São Paulo são mais raros ainda. É bem difícil para mim. Porque não estou, há algum tempo, nessa pegada do ultrapragmatismo e menos ainda do consumo. E ainda assim, São Paulo é uma experiência de dívida financeira. E olha que eu evito comprar cerveja sem ser no supermercado.

Tentei articular trabalho na cidade, mas também essa é uma experiência reveladora. As condições são impossíveis em alguns casos e simplesmente inviabilizam a realização dos trabalhos. Eu nunca achei, mesmo antes de mudar, que São Paulo era a solução (nenhuma cidade é solução). Mas há esse mito de que SP é um lugar a se chegar. O louco é que comecei a perceber a cidade mais como um vetor de saída. Ouvi muitas vezes em conversas a satisfação compartilhada pelas pessoas que vivem aqui de deixar a cidade, para situações de viagem a trabalho ou lazer. Na real, é muito curioso viver em uma cidade pela qual grande parte dos moradores sentem ódio.

Ao mesmo tempo e de forma muito ambígua, São Paulo tem esse mito da cidade “que tem tudo”. Ou que você pode encontrar o que você quiser, a qualquer hora. Uma cidade 24/7. Eu não sei vocês, mas eu preciso dormir. Esse excesso de positividade, que além de tudo, tende a desconsiderar as relações e condições de trabalho para fazer a cidade funcionar nesse ritmo “Acelera, São Paulo”, esse excesso de positividade nunca me pareceu positivo. Eu sei, é meio blasfêmia ou clichê falar mal de São Paulo. Mas qual é a vantagem de viver em um lugar em que você “imagina” que “tem tudo”? “Tem tudo” para quem? Como? Pelo consumo? Que cidade mercadoria é essa? A quem ela serve? É muito difícil também não se sentir uma mercadoria aqui, perfeitamente substituível. Claro, isso não é uma prerrogativa de São Paulo apenas. Mas aqui isso fica muito nítido.

A primeira pergunta que as pessoas fazem quando se conhecem é “o que você faz?”. Eu até fiz um post sobre isso, porque é uma pergunta que me provoca vários pensamentos, especialmente como performer. E, ao mesmo tempo, eu nunca fiz “muita coisa” em São Paulo, pelo menos na categoria de coisas que muita gente acha que as pessoas devem fazer na cidade.

Curiosamente, a experiência de São Paulo é para mim uma travessia entre negatividades. Não no sentido simples do negativo como algo mal ou ruim. Mas como uma outra face dessa imagem positiva ou positivista da cidade. Percebo essa experiência a partir das margens para o vazio, o luto, a solidão, o silêncio, o fora e a reflexão. Não experimento uma São Paulo de forma produtiva, pelo menos no sentido hiperativo dessa palavra. O que experimento é uma despossessão singular. Perdi muitas coisas e as penúltimas ilusões (difícil se livrar de todas). Esse contraste entre a subjetividade que experimento e o espaço imaginário da cidade de São Paulo potencializou o mergulho. Mais estranha do que nunca. Outro tipo de estrangeira.

Ainda bem que eu escrevo, que ainda consegui escrever alguma coisa. Porque essa despossessão foi também coletiva, com o processo das eleições presidenciais, em primeiro e segundo turno e a vitória sempre parcial da direita ultraconservadora neoliberal. Testemunhar os novos capítulos e vivenciar subjetivamente essa outra temporada do golpe político em São Paulo foi particularmente desafiador. Andar na rua ficou ainda mais duro. E a vontade de estar afetivamente com outras pessoas ficou mais forte. Uma contradição difícil de lidar e de imaginar em São Paulo.

Muitas pessoas relacionam São Paulo com uma ideia de força ou de competência, mas o que tive oportunidade de experimentar aqui é a vivência de uma profunda vulnerabilidade. Um ótimo aprendizado de resiliência. Agradeço. Se essa é uma cidade de oportunidades (e eu já ouvi uma ótima frase sobre pessoas que não estão interessadas em oportunidades), o que São Paulo promove em mim é um lugar de fora.

Sabe quando você vai ver uma peça de teatro, por exemplo, e chega na hora você não consegue entrar porque os ingressos estão esgotados? Essa situação sempre é ambígua para mim. Porque por um lado, deixo de lado a frustração e fico muito feliz que tenha tanta gente interessada em um acontecimento artístico. E por outro porque essa situação me permite uma janela inesperada de tempo. Tipo você ia ver a peça e não rola e aí você “precisa” decidir o que vai fazer. Quer dizer, se você vai voltar para casa ou vai para outro lugar. Enfim, você não sabe o que fazer porque tinha programado fazer outra coisa. E de repente você está ali, de fora, com o tempo diante de você. E isso pode ser muito interessante. 

Fotografia: Fernanda Branco Polse 
(ver ação "PONTOS DE VISTA" no site www.anasantosnovo.com )


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