por uma performance queer do luto




Ou
Por uma performance queer do luto

Por Ana Luisa Santos


Testemunhar a experiência de luto que acontece em mim 
Perceber como a sensação de perda é muito forte
As vezes é tão difícil que eu tento racionalizar contabilizando a perda para tentar suportar
As vezes eu quero acreditar que o outro perdeu ou vai perder mais do que eu
Mas isso não faz diferença
Isso não é criação de diferença
Eu perdi e eu tento perceber ou imaginar a dimensão dessa perda
A questão não é se o outro perdeu mais ou menos que eu
Imagino que o outro perdeu também
Mas eu não preciso perder mais ou menos que ele
Para tentar entender que o outro perdeu
Que eu perdi também 
A gente perdeu
Nao é uma competição de perda
Eu perdi e se eu conseguir perceber que houve uma perda significativa é porque houve uma transformação, uma mudança
Eu percebo que eu tinha ou vivia algo que era muito importante para mim 
(era uma ilusão que eu tinha alguma coisa)
Eu vivia algo que era muito significativo para mim a ponto de perceber a perda
Eu reconhecia a importância do que eu vivia
Eu percebo que h[a uma memória que me compõe ou que compõe a experiência de vida que habita em mim
Eu vivi algo que agora não existe mais
Um vínculo se rompeu
A perda decorrente dessa morte
O luto proveniente dessa dissolução 
Nao precisa ser comparada para ser aliviada
Ou até para ter legitimidade
Como se tudo e todos e todas precisassem ser comparadas para existir
A comparacao como vida binária
Nao é a comparação que implica uma fuga 
Uma fuga de sua intensidade
Nao é a comparação o indicador de intensidade
A perda constitui a experiência
E não há comparação que dë conta disso
A perda é singular
E por isso ela pode ser interessante


Diante da dor dos outros
Já dizia susan sontag
Como reconhecer em você a dor
Como reconhecer no outro a dor
Como reconhecer a dor junto
O que você perdeu?
O que eu perdi?
O que nós perdemos?
Muitas vezes pensamos que não “temos”nada
Muitas vezes penso que não “tenho"nada
Percebo essa influência de que para se “ter”alguma coisa é preciso “ter”
É preciso “ter"muito
Mas viver é valorizar não no sentido de ter
Reconhecer que há algo de vida a ser perdido
Algo que vale viver
Algo que vale a pena ser vivido
Algo que se perdeu
A escolha de como viver a perda
Sem competição 
De viver mais ou melhor
Já é bem desafiador viver, simplesmente
A escolha de viver a vida como perda também
Uma vida que não é só dividendos
Eu sinto que perdi muito não necessariamente porque eu “tinha” mais
Eu sinto que perdi muito porque talvez eu sinto mais que eu perdi
Quer dizer
A perda é intensa em mim
Ou é algo que eu reconheço
Talvez porque eu valorize muito as relações
As pessoas
As situações de vida
As escolhas
Eu reconhecia valor naquilo que eu vivia
Era muito significativo para mim
Era importante
Para a minha vida

Eu escolho viver a perda
Eu escolhi viver a perda
E escolhi viver intensamente esse tipo de experiência
Isso não quer dizer que eu sofro para sempre essas experiências de perda com a mesma ou uma única intensidade
Em um momento inicial é muito difícil
A sensação de separação é muito forte
Há um grande espaço que anteriormente estava ativado conjuntamente
E que agora você pode ou deve ativar por você mesma e/ou em encontro com outras e novas parcerias e alianças
Mas no momento inicial há uma intensa sensação de morte
Um tipo de indigencia
Um pouco de você morre
E isso as vezes é difícil e duro
A gente não se acostuma a morrer muito
E aí quando depois d luto
O luto dura um tempo
Uma performance de longa duração
Demora um pouco
Ás vezes vocë quer que chegue logo o final
Para você poder aplaudir e sair do teatro
Ou finalmente poder ver o palco vazio
O pau vazio
E enquanto todo mundo sai achando que acabou
Voce continua ali
Olhando para o espaço
Vazio
Pleno de imaginação

As vezes é difícil honrar a memória
Boa ou ruim
Eu honrar
Eu entendo como 
Uma forma de elaboraçao
Uma forma de oração
Que não acaba com o que aconteceu
As coisas não acabam
Elas se transformam
Há muitos tipos de fim
Há muitos finais
Há muitos inícios
Possiveis
Como começa
Como termina
Quem disse que acabou
Quem disse que a luz acende no final?
Quem disse que a luz acende no começo?
Quem disse que a ditadura acabou?
Quem disse?

Honrar o que no corpo é memória
A memória da vida no corpo
Corpo memória de vida
Que gestos o luto provoca?

Achei muito difícil articular uma memória afetiva depois de uma situação traumática
Como reconhecer
Como reconhecer o que em mim vivia ali
Como reconhecer a vida nessas outras
Condições contraditórias
Como reconhecer a vida que eu vivia ali e depois não vive mais
A vida pede passagem
Entra na condução
E vai
Procurar outro lugar
Em mim 
No mundo
Outro lugar imundo

Sinto-me perdida
Perco
Há perda
Eu perdi
Há muita perda depois
O que é criação de
O que é memória de 
O que você escolhe que continue a viver em você
O que você não escolhe
O que não escolhe você
Eu não sou escolhida
Até que ponto as escolhas são coletivas
O que se escolhe junto ou separado
Por uma performance queer do luto
Luto
Luto
Luto
Luto para não escolher ressentir
Sinto novo
Sinto de novo
Novo sentir para a memória
Para o mito
Minto

Queer não é ressentido
Bicha não é ressentida
Sapatão não é ressentida
Travesti não é ressentida
Trans é movimento
Ressentir é ressecar
Eu choro

As vezes eu não sei porque
As vezes eu nem percebo
O ressentimento
Por isso é tão perigoso
Como o ressentimento pode ser manipulado para o ódio

Memória não é ressentimento
Memória é criação

Honrar a memória
E não querer apagar o corpo dela
Memória apagada a força vira ressentimento

Honrar a memória
E prestar atenção para não deixar virar ressentimento
Porque há muito estímulo para apagar memórias
Apagar arquivos
Cancelar testemunhos
Esvaziar cartuchos
Liberar memória no celular
É preciso liberar a memória sim
Mas não necessariamente deletando aplicativos para recuperar espaço
Como se o espaço fosse finito
É preciso criar espaço
Dentro e fora
Fora e dentro
Somar os lados
Ocupar o salão de festas do condomínio
Criar espaço com margens móveis e translúcidas
Transitórias
Criar alianças com margens
Com margens de erro
Margens que se tocam
Peles
Poros
Poros cheios de vozes
Poros cheios de ecos
Vozes porosas
Cheias de suor e saliva
Pelos e lágrimas
Lubrificando corpos espaços
Gerando novas memórias
Em mim
De mim
Pra mim

Sem mim

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