justificativa eleitoral ou por uma performance queer da votação

JUSTIFICATIVA ELEITORAL OU POR UMA PERFORMANCE QUEER DA VOTAÇÃO

por Ana Luisa Santos

hoje eu observo gestos repetitivos
busco conscientemente e com
certa expectativa pela chance
de testemunhar gestos novos
inéditos
gestos raros
tão raros
novos códigos
quase não reconhecíveis ou
decifráveis
gestos nunca são ingênuos






eu não vou votar
eu não vou voltar
eu não vou votar esse ano
estou em trânsito
não consegui transferir o título a tempo da eleição
não sabia do poupa tempo
não sabia que eu podia votar em trânsito
muitxs podem me julgar dizendo que o voto é mais importante do que nunca
talvez seja mesmo
talvez sempre tenha sido e a gente não tinha percebido
sinto muito
não consegui fazer esse rolê de justiça eleitoral
junto com todo esse processo de mudança
de mudança pra São Paulo
para hoje
para quem eu estou tentando desobrir que posso ser


isso não quer dizer que eu não esteja me preparando para a eleição
não estou trabalhando para a eleição
não estou em campanha
nunca trabalhei para campanha
mas todo mundo é cabo eleitoral
uma versão militar digital de angariar votos
ou favores
ou pavores
ou jogos
experimentar posições
tentar (de alguma forma) acreditar em alguma coisa
exercitar algum tipo de imaginação política
com mais ou menos imaginação
mais ou menos singularidades
é mais fácil acreditar no que muita gente acredita
do que inventar uma nova forma de fé todos os dias


crença é um exercício de consciência aguçada
acho que era essa a frase que eu li
não tenho como justificar
tento mostrar
tento fazer
escrever
criar junto

dessa vez eu vou me justificar ao poder estatal
de que não vou votar
porque estou fora da minha zona eleitoral
estou fora da minha zona de conforto
será a minha primeira justificativa

antes
desde os 16 anos
eu sempre votei
e não só votei
como fui mesária de eleição
e depois fui presidente da sessão
um dos grandes orgulhos do meu pai
ele ficou muito comovido junto ao seu senso cívico
de sua filha mais nova trabalhar como mesária por várias eleições
e chegar (como se fosse uma questão de meritocracia)
a presidente de sessão
alguém com poder
alguém com autoridade suficiente
para “mandar prender”
quem quer que causasse alguma situação extrema de ameaça à votação
meu pai foi me visitar durante o trabalho
votávamos na mesma zona eleitoral
embora em sessões diferentes

além dos vale-refeição que recebíamos
tínhamos direito a dois dias de folga do trabalho
como na época eu trabalha como jornalista
e iria trabalhar no jornal de qualquer forma por causa do plantão da eleição
decidi que essa era uma boa troca
ser mesária
trabalhar por um domingo em que não se pode vender ou comprar bebida alcóolica
por folgar dois
dois dias em qualquer semana que eu escolhesse
e que não poderiam ser descontados de minha remuneração
foi a última (e praticamente)
a única experiência em que trabalhei de carteira assinada
por isso esses arranjos eram possíveis
e certamente
considerados por mim
e pelo jornal

passados muitos anos dessa situação
estou agora escrevendo sobre justificativas
ou a falta delas

não tenho justificativa para não votar

ou você poderia considerar fracas
as minhas justificativas

eu retornei há duas semanas de BH
não tenho dinheiro para investir nas passagens de ônibus
votar significaria para mim um gasto de 300 reais
eu gostaria de votar em Áurea Carolina, Duda Saiert, Juliah Santos
de verdade
louvo essas pessoas
que dedicam suas vidas a esse trabalho
minha maior admiração
pela coragem
capacidade de invenção
generosidade
senso social
ética
são maravilhosas
busco contribuir com elas
e não só durante a campanha

estamos todxs decepcionadxs com as instituições políticas
regimes de representatividade
milhares de decisões e jogos legais
que passam longe do que seria mais interessante para a maioria das pessoas
para a maioria das vidas
99%

nós nos tornamos uma porcentagem

uma porcentagem maioritária
em uma desvantagem exponencialmente proporcional
a essa desigualdade
1%

votar não te dá o direito à certeza
votar não te dá o direito
nada pode te dar uma consciência mais tranquila
na última eleição foi muito difícil votar para presidente
aquele clima político só piorou
agora é golpe

minha vida mudou muito desde aquela época
não sei se piorou
esse é material para outra escrita
mas mudou muito
eu aprendi, eu estou aprendendo
sobre o quão ingênua politicamente eu era
embora já naquela época
não tivesse a ilusão de que meu voto
pode mudar tudo
pode ajudar a mudar
é preciso lutar em todas as frentes
mas não quer dizer que temos a ilusão de que o voto será suficiente

fazer político é exaustivo
pode ser que você queira se concentrar na época das eleições
para com campeonato e
parece que alguém vence no final
mas nos últimos tempos
só contabilizamos perdas
as vitórias mudaram de textura e de dimensão

hoje eu avalio, por exemplo
o que eu conquistei com um fim de namoro
não
nenhum novo relacionamento afetivo-sexual estável
apenas mais consistência do que consigo perceber em mim em termos
de vulnerabilidade e dependência
co-dependência
essa consciência
esse tipo de lucidez
pode ser uma conquista,
se você considerar assim


com o voto é quase a mesma coisa
quer dizer
não achar que tenho poder
como eleitora
é claro que há algum tipo de poder
senão podemos declinar de nossa crença democrática
podemos?
essas impotência (in)conformada
quer dizer
o que eu posso fazer
o que eu posso mudar
e o que eu não posso
e a sabedoria para distinguir as duas situações

é uma oração antiga
que às vezes continua valendo

sinto que estou tentando desconstruir as ideias de poder que habitam em mim
estou em queda livre
assumindo os lados insurgentes
para reforçar
resistir
denunciar
ideias ultrapassadas de poder
não estou abrindo mão da potência
a potência está na ponta dos dedos das mãos
a potência está nas mãos que tocam
nas mãos que abrem aplicativos
nas mãos que abrem
eu abro esse livro

como eu nunca justifiquei um voto
estou pensando no que vou escrever
quando receber aquele canhoto
que os mesários distribuem na eleição
você pode me dizer
você não precisa se justificar
o sistema faz isso para você
desde que você se apresente a uma zona eleitoral

tem aqueles estudos que analisam os motivos
históricos e políticos
os interesses
que explicam a legislação
do voto obrigatório
no Brasil
(dá uma olhada depois)

percebo as pessoas nas ruas
ou com quem me encontro em situações de trabalho
ou em conversas com amigos
por mensagens ou posts
sinto um clima tenso, triste
estou resistindo a essas constatações há dois anos
desde a votação do impeachment de Dilma Roulseff
há dois anos lido com uma mudança
uma depressão
alguns lutos
uma separação
uma dívida
muitas lutas
uma solidão
muitos livros
uma novo processo de análise
uma tentativa de escrita
algumas performances
um filme
a cidade de São Paulo
uma travessia ética
tranças enraizadas na cabeça
e esse caderno.





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