espécie de ensaio II


espécie de ensaio II
por Ana Luisa Santos
começo a escrever como uma espécie de exercício
uma espécie de gesto
uma espécie de resistência
insisto em maneiras de descobrir alegria
modos de contribuir e articular vida e encontro
formas de perceber o mundo a partir das relações
não tem sido fácil
há muito desencanto, desespero, destruição
esse modo medo de viver
essa falta de imaginação de futuro
esse anonimato de alma confusa entre algoritmos
não estamos nos fortalecendo
sentimo-nos dminuídos, ameaçados, praticamente extintos em nossos afetos mais ousados
esse contexto de luta, de sobrevivência, de lucidez e de alianças

viro a página
a página é o espaço deste momento
nesse gesto de escrita
nesse gesto de leitura
atravesso sílabas, estradas, estímulos e estereótipos
percebo o sol e agradeço
começo quero conheço
porque desenho conhecer
conhecer e compartilhar
tento me perceber cada menos como indivíduo
mas como uma teia de relações, convivências
estou tentando entender como posso articular
qual é o lugar e as possibilidades de espaço para o que posso fazer e chamar até de trabalho
o que eu faço eu leio
o que eu escrevo eu sinto

atuo nas frestas
minha contribuição é ínfima
sou solidária dos detalhes mais íntimos
das relações, das formas, das luzes e sombras
esse prisma que é meu exercício de olhar
e tentar traduzir pra te dizer, pra tentar
não só falar, não só ser falo, mas ser escuta também
o que entra através de ouvidos e poros sensíveis para os sons simbólicos
partículas sensíveis que orientam sensações
desejos livres ou cafetinados

decido escrever ao sol
expor a pele ao calor e à luz
uma incidência que é maior que minha percepção
um tipo de mistério que nos visita diariamente
um mistério tao profundo quanto amplo
que banha meus hemisférios e uma ideia de planeta
são tantas ficções que insisto nesse exercício de interpretação
como artista desejo desvelar engodos
mas também tenho me questionado muito sobre o alcance
esconder o início, desfrutar os fins, desdobrar os meios
um agachamento
enquanto reflito sobre a distância entre os espaço em que atuo e a arena política de acontecimento e decisão
o que implica, o que me implica, o que implica o outro
são 17 monólogos
é preciso acompanhar seguidamente
vozes plurais
diversos timbres
solos, solos em diferentes chãos
onde você pisa
em quem você pisa
como você anda
onde você distribui a poeira de seus pés
por onde você anda, por onde você quer andar
o que você escolhe testemunhar
somos testemunhas
que comprometimento ético essa condição exige?
são relatos?
são cumplicidades?
são possíveis alianças?
são repulsas?
são abismos?
são absurdos?
são interesses?
como eu testemunho?
com que grau de consciência?
como eu percebo o gesto de testemunhar no corpo?
o que eu vejo, o que eu escuto, o que eu toco, o que sou convocada a assinar?
o que eu assino com sangue?
com sêmem?
com cuspe?
com gozo?
com suor?
como percebo o olhar do outro em minha presença?
o que o olhar do outro faz?
como interfere?
o que muda quando me percebo olhada?
faz diferença o olhar presencial do olhar virtual?

flutuar na densidade bípede
consciência da morte e da vida
o que a gente caça? como eu viro esse instinto?
onde no seu corpo pulsa mais?
qual é a sua veia mais latente?
como você troca com suas artérias?
sente o tremor que seu coração faz no corpo todo
lembra das densidades do mel, do azeite, da água
qual é a densidade desse ambiente
uma maestrina da energia
axé do acolhimento
um corpo velho, um corpo antigo
um corpo mais antigo que o deles
transformar a tensão em fluidez
espécie que é acontecimento
deixa sair pelos orifícios
ecos dos orifícios
tocar o outro com seus orifícios
encostar seu cu no cu do outro
lamber os olhos
beijar as amídalas
desconstrói a realidade
inventa outra realidade
abre mão de ser bípede
cria outra espécie
onde respira
onde procria
onde imagina
onde goza
onde germina
qual é a semente
como é o broto
condição filhote
condição mamífera
de quem você mama normalmente?
como é a entrega?
onde é fóssil no seu corpo?
onde é tátil?

começo a escrever com a chuva
tudo escorre
tudo corre
parece
para longe daqui
sou desafiada a conviver
com quem não conheço
com quem conheço demais
com quem não me reconhece
um tipo de experiência inaugural
de encontro e de vida
escuto vozes
tambores
vibraçoes de cordas e peles orgânicas e artificiais
sou surda para o que quer me diminuir
ou confundir o que estou a buscar
não evito conflitos
sou toda argumentos e escuta
percebo o corpo da espécie
espécie que ginga
espécie de ginga
gim tônica
logo de manhã
tonifico nervos e erotismos
meu maior músculo é de alegria
sou lúcida em minha condição vulnerável de existência
os atrasos me comovem
sou mesmo horários incertos
torno-me chuva que molha e escorre
fazendo cócegas no chão e nas plantas
tudo é concretamente poético

escrevo como quem engole
antes de mastigar
dura ou mole
faço tudo em pedaços
recolho migalhas que os outros não percebem
não desperdiço nada
minha tecnologia é essa tinta
esse petróleo fóssil
e essas árvores em seu devir página
escrevo como quem pede benção
e observa a gota
que insiste em pingar lá fora
e aqui dentro
sigo trabalhando
nessa tarefa intensa de vida
de acreditar na vida
o que eu faço eu respiro
imagino diálogos
invento silêncios
subverto discursos
chega o sol e muda a luz de tudo
chuva é prisma para possíveis lágrimas
lágrimas de gozo
choro de prazer
aquela emoção depois de transar
depois de morrer mais um pouco
o corpo preenche o espaço
move-se com a angústia de sua consciência
incerto de compartilhar
o seu próprio risco
na narrativa de seu jogo

comprei esse caderno novo
longas páginas
em que discorro sem ter que pensar no fim
o fim da linha
o fim da vida
o fim do mundo
isso que agora testemunho
é o milagre de uma formiga
que sobrevive no cimento
nesta sala tem espelhos
e cadeiras
e janelas
e grades
grades nas janelas
e de onde vem esse medo de grades?
que vibração é essa que ameaça?
onde meu gozo te amedronta?
meus pêlos insistem em crescer continuamente
sou toda pêlos e medos
preciso de dinheiro
preciso de carinho
preciso fumar um cigarro
compro um novo isqueiro
penso em vender sexo
meu próprio sexo
que não é só meu
esse caderno é vermelho
da cor do meu sangue
que imagino sob a pele
como é o sangue que corre em você?
qual é a cor do sangue que escorre?

Comentários