Visibilidade a que preço?


por Ana Luisa Santos1

Dinheiro é uma coisa boa ou ruim? Visibilidade na internet ajuda ou atrapalha? O corpo é meu ou é do outro? Estou escrevendo como uma forma preliminar de estudo sobre a repercussão do registro em vídeo da performance MELINDROSA que realizei no Rio de Janeiro no início de dezembro de 2017. Estou elaborando a análise desse fenômeno que aconteceu na rede social a partir de um vídeo anônimo, feito por um aparelho celular, que registrou a ação que aconteceu no Largo da Carioca na capital fluminense.

A primeira vez que fiz esse trabalho foi no início de junho de 2014 na Praça Sete da cidade de Belo Horizonte, Minas Gerais. A re-performance de Melindrosa aconteceu no final de 2017 no Rio de Janeiro através de uma articulação com o projeto “As Mil Mulheres”, documentário da DAZA Produções, sobre o processo criativo de três artistas selecionadas através de convocatória pública, que tem previsão de lançamento em meados de 2018. Além de Melindrosa, realizei a performance inédita Feminista e o filme registrou o processo de trabalho para ambas as ações.

A ação de Melindrosa, como uma intervenção urbana, escapa das conformações características dos espaços artísticos tradicionais em vários sentidos. A performance abre-se para o risco de ser registrada através de celulares com câmeras, e também difundida através das redes sociais na internet. Em 2014, quando realizei a performance pela primeira vez, apesar dos inúmeros celulares que intermediaram o acontecimento entre a ação e a audiência, nenhuma das fotos ou vídeos realizados pelas pessoas que testemunharam a Melindrosa foi para a internet. Em 2017, o registro anônimo viralizou no Facebook, primeiro através de uma página chamada Rio de Nojeira. O vídeo foi retirado pela administração da rede. Depois disso, o vídeo foi editado e republicado por um artista do Rio de Janeiro e viralizou.

O que mudou de junho de 2014 para dezembro de 2017? Tudo. Copa, Olimpíadas, crises políticas, econômicas, polarização política com as eleições de 2014, impeachment como golpe de Estado, estado de exceção, censura, campanha eleitoral para 2018, denúncias, delações, operações, retrocessos e a mudança radical do ponto de vista político: todas as pessoas saindo do armário, com seus afetos, seus medos, seus ódios, assim como suas lutas, suas vozes e seus desejos.

Como artista visual da performance compreendi que realizar a performance Melindrosa nesse outro contexto, no final de 2017, em articulação com o documentário As Mil Mulheres, consiste em um desafio ainda maior pelo acirramento dos afetos políticos no país e pelo espaço de realização no centro do Rio de Janeiro, que diferentemente de Belo Horizonte, é uma cidade com uma carga simbólica muito mais intensa do ponto de vista da história da imagem do Brasil, da imagem que o país tem de si mesmo inclusive no contexto mediático da televisão, da cidade dramaturgia-cenário e da percepção mais nítida de uma sociabilidade cênica litorânea em que o corpo é vivido como capital.

A operação do espaço no caso da performance Melindrosa como possibilidades de desdobramento da ação. Percebo que a ação provoca a imaginação de possibilidades do acontecimento da performance em outros espaços. Uma amiga, por exemplo, sugeriu que eu realizasse o trabalho no Congresso Nacional. Acredito que a expansão das possibilidades de outros tipos de situação provocadas pela dramaturgia do espaço faz parte da reverberação do trabalho.

Melindrosa revelou-se mais difícil por ser ainda mais ambígua ou seja, capaz de vibrar ainda mais significados ou sentidos múltiplos e esse desafio ético-estético me interessa como performer. A articulação com o documentário As Mil Mulheres também me proporcionou não somente a viabilização do trabalho, mas também a oportunidade de compartilhar o processo de criação e preparação de uma performance, o que pode contribuir, acredito, para a aproximação com uma linguagem que é ainda pouco conhecida pelas pessoas em comparação com outras manifestações artísticas como a música, o teatro ou a literatura.

Melindrosa constituiu um desafio ainda mais intenso também por causa de sua repercussão na rede social. Eu ainda estou analisando esse fenômeno e estou estudando bastante para escrever sobre essa dimensão do trabalho. Como performance, Melindrosa é uma intervenção urbana com forte caráter de vídeo-performance. O trabalho vibra como acontecimento para quem testemunha a ação no local e também para quem tem acesso ao registro audiovisual. É interessante perceber, no entanto, que, diferentemente do registro da ação que realizei em 2014 e que foi exibido em minha primeira exposição individual em 2015 e está disponivel no site do meu trabalho, o vídeo que viralizou na rede social em 2017 é acompanhado de textos elaborados pelas pessoas que postaram o vídeo, além dos comentários e dos números enormes, fora da proporção da escala humana, assustadores e ao mesmo tempo misteriosos algarítmos de compartilhamento e visualização que as postagens no Facebook atingiram.

As características desses textos em forma de postagem ou de comentários que acompanham o registro anônimo em vídeo reverberaram outros sentidos sobre o trabalho, desdobrando novas leituras, incômodos, ambivalências e revelações sobre a performance. Os contatos que recebi sobre esse fenômeno eram em sua maioria referentes a incômodos relativos aos textos que acompanham o vídeo, no sentido das interpretações compartilhadas sobre o trabalho.

Percebo que a sobreposição de textos e compartilhamentos em determinados contextos virtuais como perfis da rede social pode expandir ou deturpar a ambiguidade da performance. No caso expansivo, há um compartilhamento real do trabalho, no sentido da potencialização de seu sentido poético-político. Mas na dimensão em que percebe-se um achatamento do sentido, parece operar uma tática de esvaziamento da potência do trabalho, que traduz um tipo de escolha ético-estética de lidar com o ato artístico, uma escolha que abdica do pensamento como tarefa interessante de reflexão sensorial para lidar com os aspectos múltiplos das narrativas que a performance pode propor. Há uma dinâmica de temporalidade na rede virtual que parece implicar essa caracterização da arte como superfície e não como imagem que evoca.

Como artista visual da performance estou colocada diante de um novo desafio: percebo que o vídeo, assim como o dinheiro, tornou-se um vírus. Que o vídeo, assim como o dinheiro, se tornou um instrumento para o que as pessoas desejam expressar. Que o vídeo (e seu compartilhamento) se tornou uma forma de apropriação da imagem do trabalho, assim como a apropriação do dinheiro que acontece na ação. Que o vídeo foi consumido, assim como o vestido de dinheiro. Que o registro anônimo entrou em circulação na rede, assim como o dinheiro da roupa entrou em circulação na rua. O trabalho continua vibrando, agora nessa outra dimensão virtual, assim como na dimensão da circulação da moeda e do incômodo diante da questão ética que a performance propõe também repercute no ponto de vista que aparece em cada comentário, em cada texto que acompanha o compartilhamento do dinheiro e da imagem ou da imagem-dinheiro.

Nesse sentido, é interessante refletir como a atração que o registro da performance Melindrosa pode tangenciar os aspectos pós-pornográficos do trabalho como uma reflexão sobre o caráter obsceno do dinheiro. Melindrosa acontece no campo de disputa simbólica das imagens e percepções das corporeidades no contexto contemporâneo de exploração do desejo e da sexualidade com fins comerciais. O testemunho da performance ou o acesso ao seu registro são ações difíceis, intensas pelo conteúdo violento que a ação desdobra. É bem desafiador perceber como o registro em vídeo de uma ação agressiva atrai tantas pessoas, assim como na pornografia tradicional, mas acredito que a performance propõe um transbordamento da relação ao inserir a ambiguidade do jogo no campo de forças que atravessam a ação e permitem compreender o trabalho como pós-pornográfico (ou seja, Melindrosa utiliza elementos pornôs, mas inverte os polos de energia e acredito que é essa inversão que potencializa a perplexidade diante da performance).

Como performer o meu trabalho torna-se ainda mais difícil e estou elaborando, como eu disse, uma análise mais extensa sobre esse fenômeno. E quero compartilhar esse ensaio assim que conseguir escrever e descrever a potência dessa experiência do ponto de vista artístico-político-poético. O trabalho continua reverberando em minha percepção e agradeço o contato e o apoio de todas as pessoas que se manifestaram em força pela coragem da performance. Permaneço atenta, registrando possibilidades de leitura, dúvidas, questões para construir uma análise desse trabalho e de performances futuras. Continuo aberta para trocas, diálogos, provocações. Sigo no trabalho, no estudo, na escrita e na preparação como forma de fortalecimento para lidar com a luta de criar e reverberar o intenso agora.


Este foi um breve depoimento referente ao início da análise que o fenômeno da viralização que o vídeo de registro anônimo da performance Melindrosa provocou no processo de trabalho e que, na época (dezembro de 2017), também foi compartilhado no meu perfil na rede social (Facebook). Naquele momento, acreditei que o “timing” de resposta para a repercussão imediata precisava de certa agilidade. E por isso compartilhei o início de um trabalho que continua. Inclusive com o novo desdobramento que acontecerá no contexto do documentário “As Mil Mulheres”, com direção de Carol Benjamin e Rita Toledo, com estreia prevista para o início do segundo semestre de 2018.

Desde então, persisto no estudo das possibilidades de análise do trabalho e do fenômeno de sua viralização na internet. Ainda não consegui lidar com a dimensão completa desse desdobramento da performance Melindrosa. Neste momento, espaço e suporte, desejo compartilhar algumas perspectivas iniciais de elaboração. Como eu disse, o trabalho está em processo. E preparo uma versão mais desenvolvida desse material para um novo trabalho, que também terá forma de livro de artista e cujo título será “SE TOCA: DEVIR MANUAL LÉSBICO”.

Para o momento, apresento algumas percepções preliminares, reflexões provisórias, que ainda se transformarão a partir dos efeitos do tempo e da possibilidade de aprofundamento no estudo e na elaboração de uma análise mais vertical do trabalho e de sua viralização. A ideia para esse momento é compartilhar algumas tentativas de abordagem de análise. Seguem algumas táticas de aproximação dos questionamentos que o trabalho gerou a partir das dimensões diferenciadas de formato (o aspecto da textura do registro anônimo e da reverberação virtual) e de articulação (no que diz respeito a outras configurações propostas pelas conexões e sobreposições de sentidos a partir do espaço da rede social na internet).

Estou buscando descobrir possíveis abordagens relacionadas com os materiais da performance Melindrosa. A análise do dinheiro como um dos principais materiais do trabalho está derivando uma complexa gama de estudos sobre economia e outras pesquisas que investigam a dimensão social da dívida na contemporaneidade somada às demais situações de precarização das condições de trabalho e de vida em um mundo cada vez mais dividido em os 1% mais ricos do planeta e os demais 99% da população.

O dinheiro também funciona no trabalho como material de linguagem pós-pornográfica. Esse aspecto parece ter sido potencializado pelos desdobramentos do fenômeno da viralização na internet com suas texturas, dispositivos, plataformas, tecnologias e algoritmos. É nítido como as formas e possibilidades de fruição do trabalho na internet são bastante diferentes da dimensão do testemunho da ação em seu acontecimento biofísico ou de seu acesso através do portfólio de trabalhos artísticos que está disponível no site www.anasantosnovo.com.

A repetição, a disponibilidade, o excesso, a hiper-reação ao trabalho expressa em comentários, compartilhamentos e análises diretas produzidas para vídeo no Youtube, o consumo da imagem, a tentativa de criar um consenso a respeito do trabalho e seus possíveis significados ou intenções, os pré-julgamentos, a aceleração da interpretação imediata e da opinião pronta, a sede de polêmica, a atração da linguagem da violência, a pornografia, a vontade de vingança pós-censura, a densidade do questionamento ético, o surrealismo da proposta: todas essas e outras possiblidades de leitura do fenômeno da viralização da performance Melindrosa na internet podem ser acrescidos da quantificação, tipificação e citação de todos os comentários publicados a respeito do registro anônimo em vídeo que constituem também estratégias interessantes e talvez imprescindíveis nessa tentativa de abordagem do desdobramento da performance na internet das redes sociais, especialmente o Facebook, mas que acontecerá também, a partir do documentário, em outros suportes como o cinema e a televisão. Como um trabalho em processo, compartilho os desafios de articulação dos materiais, linguagens e suportes para a elaboração de uma escritura que potencialize a percepção do trabalho. Uma possibilidade de texto que contribua com a poética proposta pela Melindrosa, acrescente outras perguntas e outros pontos de vista.

A continuidade do trabalho a partir dos estudos, elaboração e análise dos desdobramentos apresenta um desafio muito forte também com relação à preparação que a performance Melindrosa me demanda como performer. Integro a elaboração textual pós-ação aos processos de trabalho e curadoria, como os relatos compartilhados nos blogs das exposições “Inflamável” (www.inflamavel2015.blogspot.com) e “Perfura \ Ateliê de Performance” (www.perfuraateliedeperformance.blogspot.com). Mas no caso de Melindrosa, esse gesto tem um carácter diferenciado, seja pela sua duração (a primeira ação aconteceu em 2014), seja por causa das características da repercussão: muitas pessoas tiveram a iniciativa de conhecer o trabalho, através de visualizações, compartilhamentos e/ou comentários através das ferramentas que a internet proporciona para essa aproximação com a performance. Se testemunhassem a ação durante sua realização ou articulassem o acesso a uma outra forma de registro em uma galeria de arte, talvez essas mesmas pessoas não tivessem o mesmo impulso ou condições de expressar o que escreveram nos comentários. Para muitas pessoas que tiveram acesso ao vídeo no Facebook, talvez tenha sido um dos primeiros contatos com a arte da performance ou de maneira mais ampla, com um trabalho de arte contemporânea.

A continuidade da Melindrosa implica em uma diferença no processo de trabalho que experimento como performer, na medida em que preciso lidar com a violência da proposta não só no momento da realização da ação, mas também de grande parte dos comentários, que trazem diretamente ou nas entrelinhas a expressão de intenções machistas, misóginas, racistas, fundamentalistas, de censura ou simplesmente de negação ou desdém com relação à possibilidade do trabalho artístico. Esses comentários e gestos que durante a realização da ação, acontecem e são testemunhados por mim como performer, no caso da internet, configuram uma proporção e uma temporalidade 24/7 (24 horas ou 7 dias na semana). Esses comentários ganham também outro tipo de materialidade através dos textos que compõem junto às vozes, sons e gestos registrados pelo vídeo, outros deslocamentos da ação.

O que estou buscando desenvolver a partir de algumas abordagens para essa elaboração, é um novo programa de ação que inclua o fôlego de troca energética também na esfera virtual da internet. Esse não é um aspecto particular ou específico da Melindrosa (e há casos gravíssimos de censura e ameaças explícitas que aconteceram com outrxs performers e artistas em 2017). Mas a experiência do fenômeno da viralização na internet do vídeo anônimo de Melindrosa e sua repercussão representaram a demanda de um diferente tipo de resiliência que como performer estou descobrindo. Como artista entendo como urgente a elaboração de outro espaço de trabalho, através do diálogo e/ou intervenção em um contexto político de falsos perfis, falsas notícias, robôs, polarização afetiva, eleições e outros esquemas de vigilância, controle e poder sobre a vida.

Como performer, um dos principais interesses artísticos é a realização de ações. Ações que acontecem no espaço, no tempo e no encontro com outras pessoas, mas que se desdobram para outras instâncias como a fotografia, o vídeo, o livro, a internet. A experiência da repercussão de Melindrosa na internet, com a quantidade de visualizações (2 milhões), milhares de compartilhamentos e comentários, converte o gesto de escuta que realizo como performer em uma ação com outra dimensão no tempo, no espaço e na forma de encontro com outras pessoas. Para realizar a escuta e a incorporação desses retornos ao processo do trabalho, percebo uma demanda de atenção específica. Há quem possa escolher não desdobrar esse tipo de informação no trabalho, devido não só à quantidade de conteúdo, mas também suas características afetivas, narrativas, desproporcionais e protegidas, no sentido da falta de orientação jurídica a respeito dos limites da produção de conteúdo e opinião na internet (o que configura a questão política do momento no Brasil e no mundo, especialmente com relação às eleições).

A qualidade desse material pode configurar um novo tipo de obra de arte (vide o trabalho de Ex-Miss Febem na exposição “Histórias da Sexualidade” no MASP), mas também da necessidade de invenção de uma nova linguagem de escuta e de resposta que ainda estou decifrando. Essa é mais uma etapa do trabalho. Como devo ler/ouvir os comentários? Devo responder os comentários? Como responder? Quais ações se articulam nesse contexto de escutas e respostas? Qual é o trabalho mais interessante para o espaço virtual? Como a arte da performance, como uma articulação da presença, pode propor diálogo na internet?

LINKS:

link do site sobre o trabalho da artista: www.anasantosnovo.com

link no site sobre a performance MELINDROSA: http://anasantosnovo.com/MELINDROSA-1

link do vídeo MELINDROSA (2014): https://vimeo.com/110795368

links da repercussão MELINDROSA (2017):


1ANA LUISA SANTOS é performer e escritora. Mestre em Comunicação Social/UFMG e Pós-Graduada em Arte da Performance/FAV, atua também como curadora em artes da presença na realização de exposições e residências artísticas, núcleos de pesquisa e criação, atividades de formação e política. Desenvolve trabalhos para teatro e dança, com destaque para dramaturgia e figurino. É idealizadora do PERFURA \ ATELIÊ DE PERFORMANCE e co-diretora da plataforma O QUE VOCÊ QUEER. Artista indicada ao Prêmio PIPA 2017. Vive e trabalha em São Paulo. Site sobre o trabalho: www.anasantosnovo.com

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