QUEDA LIVRE_um ensaio
QUEDA LIVRE1_um
ensaio
por Ana Luisa Santos com colaboração
de Daniel Toledo
QUEDA LIVRE é a reverberação de uma
dramaturgia falida. Quer dizer, da falência de uma dramaturgia. De
uma dramaturgia que não deu certo.
O processo QUEDA LIVRE teve início
quando Daniel Toledo me convidou para trabalhar como assistente de
dramaturgia para uma montagem teatral, em Belo Horizonte. Na verdade,
meu encontro com El Toledo é anterior a essa situação. Nós
compartilhamos pelos menos dois ateliês coletivos de dramaturgia e
eu me tornei colaboradora do coletivo TAZ, que realizou a montagem e
circulação das peças “Fábrica de Nuvens”, “Clínica do
Sono” e “Controle de Estoque”, com texto e direção de Toledo.
Durante os estudos para uma
dramaturgia inédita, encontramos o tema do “bullying”, que era
como uma demanda do grupo teatral responsável pela montagem em que
eu trabalharia como assistente. “Bullying” também se tornou um
vetor para pesquisas que eu e Daniel já investigávamos
anteriormente no contexto de trabalhos artísticos sobre as relações
de poder, opressões sociais, hierarquias políticas.
Entre os materiais, estudamos alguns
textos teatrais de autores coomo Ionesco, Buchner e Dagerman, que
trouxeram, respectivamente, as referências de “O Rinoceronte”,
“Woyzeck” e “A Sombra de Mart”. Somamos à análise dessas
estruturas algumas leituras de cartilhas pedagógicas, perspectivismo
ameríndio e citações de Eduardo Galeano.
Vou pular o contexto do grupo teatral
e da montagem em Belo Horizonte, mas posso dizer que havia uma
intenção de criar uma situação de interação com o público. A
equipe também estava interessada em experimentar uma estrutura
fragmentada, não-linear e não-dramática.
Eu e Daniel fizemos várias reuniões
de trabalho para levantar o que o material sublinhava e também para
tentar realizar uma composição de roteiro de cenas. Elaboramos
vários mapas de vocabulários, situações, palavras-chave, imagens
e relações possíveis e também inéditas entre os conceitos e
referências compartilhadas. Nosso empenho estava na busca de
diferentes perspectivas para a abordagem ético-estética dos temas
relativos à opressão.
Além de discursos e textos teatrais,
chegamos às proposições de algumas dinâmicas de jogos
performativos envolvendo elenco e participantes. E entre tantas
possibilidades e potencialidades de materiais tão fortes em sua
discussão ética, chegamos, ou melhor, não chegamos a um lugar de
consenso. Ficamos perdidos.
Voltamos então para os materiais
iniciais e aos estudos sobre “bullying”. “Bullying” é um
termo para denominar um fenômeno associado à prática de atos
violentos intencionais e repetidos contra uma pessoa indefesa. O
termo surgiu a partir da palavra inglesa “bully”, que significa
tirano, brigão ou valentão, na tradução para o português. “Bull”
em inglês quer dizer touro, um animal que tem como símbolos
associados a força, a virilidade, a agressividade. Retomamos o
trabalho em torno dessa imagem do touro, mas através de uma
estratégia cyborg, intuindo que o touro não representaria uma
aproximação com a natureza, mas uma imagem de desumanização e
embrutecimento.
A presença de um touro mecânico em
cena foi o eixo da proposta que apresentamos ao grupo. Caímos do
cavalo. O grupo declinou a proposição e preferiu seguir sem o
touro.
Corte
Alguns meses depois, El Toledo me
bipa: há um touro mecânico no Oásis, um clube esportivo
tradicional do bairro de Santa Tereza, em Belo Horizonte, como parte
das atrações programadas para a festa junina do espaço. Daniel
sabia que eu fiquei obcecada (no melhor sentido) com a imagem do
touro e com o desejo de realizar essa imagem, de realizar sua
instalação performativa. Fomos para o Oásis em um sábado a noite
dispostos a cair, quer dizer, a tentar montar o touro. Preparamos
alguns figurinos, combinamos a parceria para o registro fotográfico
e audiovisual com Luiza Palhares e pagamos o ingresso de R$ 10,00
para entrar no Oásis.
Chegamos cedo e acredito que fomos os
primeiros a interagir com o touro. Para cair, ou melhor, para tentar
montar, cada um teve que pagar mais R$ 5,00 para experimentar três
tentativas. Tivemos um pequeno público de pessoas que já estavam no
Oásis e outras que aos poucos chegavam para a festa. A partir desse
material corporal, desse encontro com o touro e da experiência das
diversas e sucessivas quedas, retomamos o trabalho com a dramaturgia
e começamos e redesenhar a proposta QUEDA LIVRE.
QUEDA LIVRE é a reverberação de uma
dramaturgia falida. Uma falência performativa de uma certa ideia do
que pode ser dramaturgia. No lugar da estratégia de falar e/ou
reunir discursos sobre opressão, buscamos propor situações de
vulnerabilidade do poder. Uma estratégia sensorial de experimentar a
queda. Expor e experenciar a impermanência dos lugares dos
vencedores e dos perdedores, dos valentes e dos covardes. Propor a
transmutação da queda. A queda como libertação de ideais
falidos, falsos, desumanos, colonizadores, alienígenas.
Nesse processo de trabalho, começamos
a agregar um estudo de imagens históricas e de monumentos públicos,
esculturas de homens montados. Homens geralmente ilustres.
Bandeirantes, colonizadores, militares, imperadores, peões de
rodeio, heróis nacionais, cowboys e outras referências de
virilidade e poder históricos.
O acúmulo simbólico desses gestos
considerados desbravadores ou destemidos, gestos de poder utilizados
no passado e ainda hoje pelas polícias montadas mesmo nos centros
urbanos, traduz a denúncia de agressões acumuladas ao longo de
séculos em diferentes culturas.
QUEDA LIVRE é um expurgo do excesso
desse modelo de virilidade. Uma recriação grotesta e patética da
prótese corporal de potência cyborg. Tótens incorporados por
heróis supostamente infalíveis. Desmantelamento de construções
históricas de ideiais de onipotência.
QUEDA LIVRE denuncia um conjunto de
hierarquias naturalizadas em torno de vitórias e conquistas parciais
e discriminatórias. Constitui um enfrentamento do dilema entre as
promessas de heroísmo e o esvaziamento das grandes narrativas,
buscando elaborar uma relativização desses instantes aparentemente
heróicos.
Todo mundo cai. Não é sobre
permanecer em cima. É sobre cair.
Para tentar viabilizar essa imagem,
estamos buscando alguma forma de apoio para alugar o touro mecânico
e reunir pessoas interessadas em participar de um workshop de
trabalho que vai configurar o processo de experimentação
dramatúrgica e de compartilhamento com o público, em uma estratégia
de abertura para diferentes tipos de testemunho. O workshop
funcionará como processo de desenvolvimento da estrutura
dramatúrgica para desmontá-la, ao buscar outras especificidades e
outras vozes.
Essa dramaturgia em processo não está
baseada em narrativas, representações ou conflitos dramáticos
tradicionais. Mas na efetiva participação de performers e
testemunhas da ação em um ritual ou cerimônia de ressignificação
ética da relação entre natureza e cultura, entre civilização e
barbárie.
1A
vídeo-performance QUEDA LIVRE está na internet através do link:
https://www.anasantosnovo.com/QUEDA-LIVRE.
Como dramaturgia para teatro performativo, QUEDA LIVRE articula
estratégias para viabilizar sua realização coletiva.
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