fraude

PRIMEIRO PASSO: ASSUMIR A FRAUDE

Assumir a fraude geralmente gera depressão. Quando eu fiquei deprimida pela primeira vez, minha analista disse que a depressão era um sintoma de pessoas inteligentes. Acho bem problemática e preconceituosa essa afirmação. Acho que o que eu poderia deduzir hoje dessa opinião é que pessoas com acesso à educação formal e emocional conseguem tratar mais conscientemente da depressão. Mas assumir a fraude quer dizer a partir e para além das questões sócio-econômicas. O advento da fraude pode ter relação não só com os sonhos, mas também com as violências. Ser uma fraude por vezes é não reconhecer a dimensão de alvo em que nos encontramos. Por vezes não temos como deixar de ser alvos. Mas podemos atuar e dançar como alvos, transmutando as leituras, as distâncias e distrações. Criação de caos costuma funcionar nesses casos. Assumir a fraude, assumir o alvo ou assumir o gatilho é um devir manual lésbico.

Depois tentar alguma dignidade na depressão. Eu sei que é muito difícil. Eu mesma passo às vezes dias sem tomar banho. Um horror. Eu tomo um comprimido diário, faço práticas programadas de produção de endorfina e busco uma alimentação revigorante. Cuido das companhias, dos silêncios, das leituras. Fico atenta aos sinais de alerta e antes de afundar completamente, procuro avisar os mais próximos e amigos para me ajudar a não afundar totalmente. Crio alças. Faço análise. E sei que preciso me nutrir de afeto como experiência ético-estética da reexistência, em processos em que sou audiência e voz. Cuido do cotidiano, cuido das plantas, cozinho, coloco lixo para fora. Fico atenta ao meu fígado e ao meu intestino. Procuro dormir e acordar bem.

Geralmente tenho grande responsabilidade pela vida. É lógico que já pensei em me matar diversas vezes, mas entendi que preciso perceber esses movimentos antes deles se instalarem. Às vezes não dá para prever e acontece mesmo assim. Mas com o tempo e o devir manual lésbico, procuro dedicar minha atenção para o que eu posso fazer. E não para o que eu não posso fazer. Essa dimensão de responsabilidade sobre o fazer, sobre o viver eu comecei a entender desde que eu era criança.

A minha cosmogonia pessoal envolve uma situação extraordinária. A vida e sua geração são situações extraordinárias. Quando eu nasci me contaram que eu tive muita sorte. A gravidez de minha mãe - totalmente não planejada - conferiu ao meu nascimento um caráter de inusitado. Felizmente, a situação da família estava melhor depois de três filhos já criados e adolescentes. Quando eu era criança, eu sempre ouvia dos meus irmãos e também dos meus pais que eu era muito privilegiada. Que por ser a mais nova da família, eu tive acesso a alguns bens que os meus irmãos não tiveram. Esses bens se referiam principalmente ao pagamento de uma escola particular. Mas é importante considerar que para a geração dos meus irmãos, que nasceram em meados da década de 1960, as escolas públicas ainda eram referência em educação no Brasil. De qualquer forma, entendo o que eles queriam dizer. Meu pai trabalhava muito, mas não trabalha 16 horas por dia como ele costumava trabalhar quando meus irmãos eram crianças. Morávamos em uma casa própria. Meu pai tinha um carro novo. E meus irmãos estavam começando a trabalhar ou entrando na universidade pública.

É importante dizer também que os meus pais migraram para Belo Horizonte no início da década de 1960 vindos do interior do estado de Minas Gerais. Eles estudaram pouquíssimo durante a infância e adolescência. Ambos possuem uma origem bastante rural. E uma grande devoção pelo trabalho e pela religião católica. A situação de privilégio que eu tinha estava relacionada principalmente à dimensão histórica da família, mas, também, a uma dimensão filantrópica. Como católicos praticantes, meus pais sempre colaboraram ativamente nas atividades da igreja. E essas atividades, para além do dízimo, constituíam a organização de eventos beneficentes, cursos de noivos, visitas a pessoas em situação de miséria e doentes, entre outras relações que me lembravam sempre que eu não podia desperdiçar nada. Desde a comida no prato até o estudo eram situações que mereciam a minha gratidão e apreço. Mas a dimensão pessoal do privilégio no seio da família foi algo ainda mais marcante, porque realmente gerou um tipo de binarismo entre mim e os demais membros parentais, para além da grande diferença de idade. Até hoje nunca fui convidada ou me convidei para fazer parte do grupo de whatsapp da família.

É como se a dimensão de privilégio fosse algo íntimo para mim, desde criança. Foram muitas sessões de análise para dar conta da neurose que isso gera em mim. Hoje percebo que o tipo de humildade que conquistei através da convivência com o privilégio desde muito cedo na minha vida me ajuda a perceber a dificuldade de algumas pessoas hoje que estão buscando reconhecer seus privilégios. Devir manual lésbico, se toca, acontece também a partir dessa investigação.

Vale ressaltar que a dimensão de privilégio que minha família considerava que a minha presença configurava conviveu, rapidamente também desde muito pequena, com a expressão de minha dissidência sexual. Desde dois, três, quatro anos de idade eu era uma criança viada. A primeira negociação que fiz com relação ao meu corpo foi uma troca. Minha mãe me contou que eu era muito afim de usar uma calça jeans. Daí meu irmão mais velho me fez uma proposta: ele me dava a calça, desde que eu largasse a chupeta. It´s a deal! Hoje eu me pergunto: o que me fez querer tanto vestir um jeans aos dois ou três anos de idade? Que corpo era esse ou que corpo me chamava a atenção? Que corpo chegava até a minha imaginação?

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