falo falido
Este é um livro de proposta performativa. Uma biblioteca trans
livra. Deixo você adivinhar a materialidade de desordens íntimas.
Escapo às regras insólitas de desencantamento e às aberrações
antigas. Faço a fênix e aceito a impermanência. Linhas de fuga.
Desenvolvimentos incertos.
Sou assistente de pesquisa sobre o golpe institucional. Investigo
imagens de todo espaço sensível, bem como processos de
participação, apelo e recusa. O que compõe momentaneamente esse
campo de forças do agora instante. Lutas imprevistas. Invisto no
espaço visível. Recuso as representações tradicionais. Invento
gestos através de artes do fazer e componho expressões políticas
diretas não mediatizadas.
Na minha família a questão do dinheiro foi sempre crucial. Estava
envolvida com a cruz, logicamente. Dinheiro, nesse história, foi
sempre um fruto ou resultado do trabalho árduo. E dessa forma, algo
difícil de se obter. Consequentemente, algo que se deve poupar para
eventuais necessidades. Meu pai é um excelente administrador que
trabalhou arduamente para conquistar os bens que possui. Dessa forma
crucial, aprendi que deveria correr atrás de trabalho, não
questionar muito o cistema, nem exatamente o valor pago pelo
trabalho. E também a economizar, a ter muito cuidado (quase fobia)
com consumo exagerado. E também a desenvolver um pânico com relação
a dívidas.
Hoje quando eu preciso negociar o valor financeiro do meu trabalho
artístico, eu lembro dessa história. Ninguém te ensina a negociar
o preço do serviço que você presta. O dinheiro se torna um tabu
nesse campo da arte, por exemplo. Em outros espaços, falar sobre
dinheiro não é um problema. As vezes imagino que falar sobre
dinheiro seja o assunto principal, o primeiro tema, a motivação
para o diálogo, em determinadas reuniões.
O dinheiro é um assunto curiosíssimo. Há muita coisa que gira em
torno do dinheiro. Alguns diriam que vida hoje gira em torno do
dinheiro. Mas é como se não se falasse sobre dinheiro como
motivação. Podemos falar sobre preços de produtos, sobretudo
combustíveis fósseis e alimentos. Também somos bombardeados por
informações de descontos nos preços, promoções, liquidações.
Há também alguma informação sobre orçamentos, públicos ou
privados. Mas falamos pouco sobre nossa relação com o dinheiro.
Hoje tem dinheiro vivo, cash, e tem dinheiro de plástico, cartão.
Tem dinheiro agora e dinheiro a prazo. Mas e o dinheiro e a gente?
Quanto a gente vale em uma economia da atenção?
Eu fiz um trabalho de performance com dinheiro. Eu me vesti com
dinheiro, notas de R$ 10, e fui para a rua, em duas situações, em
duas cidades diferentes. O título do trabalho é Melindrosa.
Esse trabalho é sobre estupro. Eu sofri violência sexual no âmbito
da minha família. E fui silenciada por causa do dinheiro e com o
dinheiro. Não só por causa do dinheiro, mas o dinheiro muitas vezes
é a desculpa, a motivação expressa e ao mesmo tempo não. O
dinheiro é a não-ficção que funciona muito bem para a ficção. O
dinheiro é a utopia obscena do corpo-imagem.
Eu me tornei ativista depois de ser artista por 10 anos e entender
que ser só artista não bastava. Eu me tornei lésbica não-binária
depois de ser gay por 10 anos (ou mais) e entender que ser só gay
não bastava. Não era suficiente para o que eu desejava viver,
buscar, descobrir e compartilhar. Não dava conta do meu afeto. Este
devir manual lésbico conta um pouco dessas transições,
desses exílios.
Devir manual lésbico é um libelo sobre como me tornei uma
ativista sexual da pós-pornografia através do trabalho com
performance e escrita. Como vendo meu trabalho, como vendo meu corpo,
como vendo minha presença, como vendo minhas ideias. Parte do meu
trabalho como artista e ativista é negociar quanto vale meu
trabalho. Para poder escrever, preciso articular formas de conseguir
dinheiro para pagar contas relacionadas com moradia, alimentação,
comunicação (internet, telefone), materiais de consumo do trabalho,
equipamentos e atividades de formação e estudo, como cursos e
também preparação física e deslocamentos.
Essa relação perpassa o meu fazer como trabalho. É algo em que
preciso pensar constantemente, sobre como pagar contas, como lidar
com dívidas, com juros, com consumo. Desde o início da minha vida
adulta, por volta dos 17 anos, quando iniciei os estudos para o
vestibular para tentar entrar em uma universidade e fazer um curso
superior de graduação, já tinha em mim uma ideia de que precisava
conseguir entrar em uma faculdade pública, para me ver livre, em
parte, da opressão do dinheiro da família que me sustentava. A
partir daí, e já estudando em uma universidade federal, comecei uma
escala de trabalho que progressivamente me deu alguma condição para
que eu pudesse sair da casa dos meus pais e ir morar sozinha.
Nesse processo de primeira etapa de vida adulta, também vivenciei um
processo de 11 anos de análise. Primeiro, como uma tentativa de cura
gay proposta pela minha família e financiada por ela. Depois, eu
mesma continuei investindo na terapia, quando os meus pais perceberam
que a cura não estava surtindo o efeito desejado e me pediram para
parar. Mas foi nesse processo que consegui reunir forças para
denunciar meu agressor, que abusou sexualmente de mim diversas vezes
quando eu tinha 12 anos. Esse agressor, meu cunhado, casado com uma
de minhas irmãs mais velhas e pai de dois sobrinhos, nunca recebeu
uma punição específica pelo seu crime. Mas eu consegui denunciá-lo
para a família e isso gerou a minha libertação do cistema deles.
Houve uma negociação implícita nas escolhas e atitudes que minha
família realizou depois da denúncia. Por um lado, eles compraram
meu silêncio, oferecendo ajuda financeira para os momentos em que eu
precisasse. Por outro, eles decidiram continuar convivendo com o
agressor, escolha que implicou e implica minha ausência no ambiente
social familiar (encontro com meus pais esporadicamente, sempre em
situações informais, nunca em datas especiais ou eventos oficiais
como aniversários, casamentos, festas tradicionais religiosas, em
que geralmente há uma reunião dos parentes).
Essa dimensão configurou um tipo de autonomia para minha
(re)existência. Embora eu tenha tido que lidar com uma dimensão de
rejeição, misoginia e homofobia muito forte e violenta, eu aprendi
rapidamente que eu precisava assumir a responsabilidade sobre a minha
vida e não somente no sentido financeiro. Eu precisava aprender o
que era interessante para mim. Eu precisava desenvolver uma
auto-curadoria.
A arte me ensinou a lidar com a ambiguidade como ferramenta criativa.
Depois que eu entendi que o trabalho era uma ferramenta ideológica,
eu decidi que precisava encontrar uma forma de trabalhar que me
trouxesse um senso de contribuição para a vida e que também me
ajudasse a pagar as contas. Foi uma segunda etapa de cura, depois da
análise. Foi uma apropriação queer do meu corpo. O corpo que é
muitas vezes usado contra os dissidentes sexuais tornou-se meu grande
aliado nessa descolonização afetivo-social. Entendi que eu me
tornaria uma artista da performance e que trabalharia com a
ambiguidade do corpo em presença para buscar construir outras
relações com as pessoas, com os espaços e com a minha experiência
de vida. As performances são outras vinganças. Não somente no
sentido pós-pornográfico de constituírem vetores violentos de
energia, mas também no sentido de configurarem anti-crimes. Há uma
composição de submissão subversiva muito intensa nos trabalhos,
que implica uma vulnerabilidade extremamente potente e transgressiva.
Atualmente, tenho me dedicado ao estudo da relação entre o corpo e
a imagem, no regime contemporâneo de visibilidades. E também tenho
me dedicado ao devir manual lésbico, se toca. E, também, a todos os
trabalhos que preciso fazer, em articulação com o que desejo fazer,
para financiar os investimentos que algumas performances demandam,
bem como minha própria subsistência diária e os requisitos de
preparação.
Ultimamente, isso quer dizer, desde o início do processo de golpe
institucional que acontece no Brasil, que vivenciei outro devir
manual lésbico. Eu simplesmente entrei em depressão depois de
perceber que o estado de exceção que se configurava, agora, de
maneira institucionalizada, era o regime de vida da maioria das
pessoas no Brasil. Isso me fez sentir um grande constrangimento, uma
grande vergonha, diante de minha ingenuidade política, minha
alienação seletiva, meu estado ainda não descolonizado de pensar e
viver e trabalhar. Decidi dedicar-me ainda mais ao estudo do devir
manual lésbico, com mais intensidade e afinco, ampliando o espectro
de minha atuação como artista ativista.
O devir manual lésbico é o testemunho desse processo de
descolonização que acontece em mim. Que fique registrado aqui que
não tem sido fácil, obviamente. Se toca é uma dica decolonial. Mas
essa é uma tentativa manual de compartilhar essa busca, esse devir
lésbico. Um dos maiores desafios, além da precarização das
condições de trabalho e subsistência, é a dimensão do exílio.
Na medida em que radicalizo o lésbico devir percebo uma total
revisão das relações e relacionamentos afetivos. Eu disse que
estou terminando um relacionamento no momento? Acho que uma das
expressões metafóricas mais curiosas que existem é “pagar o
preço”. O que significa “pagar o preço”?
Minha namorada se envolveu com uma mulher mais jovem, mais leve, mais
livre. Estou em um momento muito carente e em dúvida da minha
capacidade de atração sexual. Por capacidade sexual nessa frase eu
entendo o potencial de sentir e gerar atração sexual em outras
pessoas. Esse momento tem sido extremamente difícil, mas também
muito lindo porque, mais uma vez, tenho a oportunidade da experiência
da vulnerabilidade. Um tipo de sexualidade vulnerável. Sinto-me
insegura, desconfiada, intrigada com minha sexualidade. Devir manual
lésbico.
Sinto que perdi amizades e que ainda preciso descobrir outras. Que
preciso me concentrar muito no trabalho, que tornei uma pessoa ainda
mais grave. Isso não quer dizer que não seja capaz das mais
interessantes alegrias. Minha capacidade para perceber milagres
permanece. Estou constantemente atenta às dimensões de presença –
a minha, a dos outros (na e a partir da relação), a das imagens.
Para isso: não estar alheia, não ser cínica, estar aberta, ouvir,
sentir, fazer o luto, reagir e criar.
Não sou bela nem recatada nem dólar. Mudei de cidade, de sexo, de
status civil. Sinto carinho por parte de amigos com relação ao
trabalho. Tenho 38 anos no começo de 2018. Me sinto mediando
polarizações. Estou menos suscetível às ideologias (ou tento
trabalhar para isso). Acho que a experiência artística ainda é um
tipo de privilégio no Brasil. Por isso busco trabalhar também como
professora e mediadora como vieses da minha prática
artístico-profissional.
O devir manual lésbico constitui uma relação arte e vida. Eu
gostaria de tentar descrever essa estratégia de pesquisa e invenção.
A palavra sonho, por exemplo. Ano passado, durante um trabalho, duas
pessoas me perguntaram: “quais são seus sonhos?” Acho que sonho
é uma palavra para a bacia das almas. Não significa mais. É tipo
fake news. Não estou falando do fenômeno narrativo-sensorial que
vivenciamos enquanto dormimos (geralmente). Mas do sonho enquanto
utopia, enquanto último e maior desejo. Sonho me parece uma coisa de
concurso de miss. Tipo paz mundial. Eu não soube o que responder.
Acho que não sonho como as outras pessoas, nem devo julgá-las por
isso. Aliás, julgamento é uma coisa que também fica de fora do
devir manual lésbico. Acho que o sonho é uma ideologia. Então, a
relação arte-vida atravessa essa dimensão do sonho que é vendido
na padaria. Trabalhar com arte-vida não quer dizer no devir manual
lésbico que eu performo uma personagem 24 horas por dia, 7 dias por
semana (embora não tenha nada contra as pessoas que fazem isso,
sendo artistas ou não). Para mim, simplesmente não funciona porque
eu faço ações de longa duração como ler um livro com centenas de
páginas. É uma imagem duracional enfadonha, alguém lendo por horas
a fio durante alguns dias ou meses. Geralmente, silenciosamente. Eu
também não consigo me conectar com a produção incessante de
auto-imagens com grande competência porque prefiro ler. Então, não
considero que a minha vida é uma performance. Eu desenvolvo ações
que se tornam performances quando eu articulo e compartilho esses
tipos de acontecimento. No mais, eu gosto de me preparar para os
próximos trabalhos e, também, escrever.
Então voltando ao sonho, não estabeleço uma dimensão do que eu
queria que acontecesse um dia. Primeiro porque preciso realizar o que
desejo (na dimensão de criação dos trabalhos de performance).
Segundo porque estar sensível e tentar compreender a dor do mundo, a
dor do outro, a experiência da empatia é um exercício constante de
lucidez (eu não posso ser cínica). O sonho é um pouco cínico. Não
porque as coisas não necessariamente vão piorar. Mas é porque elas
não melhoram do jeito que a gente imagina ou que foi ensinado a
imaginar. O sonho parece que vem pronto como na padaria. Ninguém
pergunta as condições de trabalho para a produção de um sonho. Ou
a origem dos ingredientes. E, claro, a quantificação do preço.
Qual é o preço do sonho?
O devir lésbico é feito com ingredientes manuais de procedência
duvidosa. Às vezes eu digo em experiências de encontro, conversas,
espaços dialógicos de trabalho e colaborações, em que nos
percebemos em uma situação em que um grupo de pessoas está sentado
em roda, com ou sem mobiliário. Chamo a atenção para os espaços
vazios, nas cadeiras ou no chão ao lado. E peço num gesto que
possamos convidar as dúvidas para se sentar conosco. Dar as boas
vindas para a dúvida. Oferecer água e café, quem sabe um cigarro.
Estar aberta a escuta manual da dúvida é devir lésbico. Devir
dúvida manual lésbico.
Essa descolonização da certeza modernista, do cálculo projetista,
da meta certeira e aprovada por unanimidade ou meritocracia, é um
tipo de liberação do sonho. De que adianta o país do futuro? A
descolonização dos sonhos não diz respeito somente à resistência
vegana anti-glúten. A política sexual da carne quantifica o desejo
também em prestações suaves de sonhos de vitrines. E um dos saltos
mais interessantes do devir manual lésbico é perceber o que você
escolhe fazer depois que descobre que o recheio do seu sonho não era
exatamente como você imaginou ou como você foi treinado para
imaginar. O que você faz depois que descobre que seu sonho está
vazio? Como você lida com o fato de ser uma fraude? Tem muita gente
que fica cínica com a vida. No devir manual lésbico o espaço é
bem vindo, assim como na dança.
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