como me tornei excritora

Estou no exílio. Arranquei minhas raízes há alguns meses, não sem ferimentos e desorientações. A solidão e a falta de dinheiro são os menores dos meus problemas. Escrevo desse espaço limbo, em que estranho tudo e não reconheço referências. Estou me propondo desvelar essa transição da performer para a escritora, imprimindo presença em palavras e percepções. Escrevo dramaturgias. Sou minha imprópria dramaturga.

Sei que precisei ser corpo para escrever. Escrevo desde o corpo. Com corpo quero dizer presença e relação e não só membros e genitálias e peles e pêlos. São outras mucosas que me rodeiam e que me permitem uma experiência de troca. Eu sou o escambo. Vivo na confluência entre história e mito, herança e invenção, sociedade e rebeldia. Descubro que não me pertenço como imagino. Resolvo radicalizar essa entrega. Exponho o corpo e suas transmutações. Estou nua na internet para quem quiser ver. Proponho um compartilhamento profundo, presencial, um tipo de entrega e revanche. Outras vinganças.

Estou afetada por um novo tipo de lucidez que me acometeu nos últimos anos. Não fui às manifestações de 2013, quando o gigante acordou. Mas achava que as pessoas deviam ir. Foi muito difícil descobrir a manobra depois. Para além do golpe no Brasil, que me fez perceber a humildade necessária com que eu precisava agir - já que eu era uma pessoa ingênua politicamente -, outras lanças me atravessaram ou se afiaram em mim. A lâmina do feminismo, que eu já polia desde a infância com minha trans-vivência-experimento-queer, aliou-se a outras dinâmicas relacionadas ao respeito à diferença, à correção das injustiças sociais, à transmutação dos genocídios históricos e à resistência a todas as formas de exploração da potência de vida.

Eu caí. E essa queda me trouxe para o limbo de onde verbo agora e desloco a fumaça das ruínas. Para ritualizar esse procedimento, me dediquei às práticas da escuta e da leitura. Fui ler para tentar desentender o que não me chegava. Fui ouvir para testemunhar o luto da minha antiga forma de fé. Dediquei-me também a uma intensidade performativa, com a realização de trabalhos individuais como performer e exposições coletivas como curadora e performer.

É um luto da arte. É um luto de uma ideia de articulação coletiva. E tudo financiado com impostos. Impostos, impostos, milhões de impostos e imposições fundamentalistas de uma ideia natural distorcida em anos. Estou interessada em ânus. Sou um conjunto de inscrições manuais e alguns hiatos. Devires lésbicos. Estou revisando todas as pautas, rabiscando todos os cadernos e livros. Reparo as cores das linhas, planos, bordados e contornos sobre a minha letra. Minhas frases sem contorno. Eu saio da pauta.

Estou tentando viver uma performance pedagógica. Pratico arte da performance, leio filosofia, estudo história do corpo. Transmuto significados, símbolos e relações. Faço pedagogia de ruínas. Estudo convivências em extinção. Aceito inscrições. Sou uma auto-herege praticante de políticas ficcionais e de tesões incertos.

Depois do ritual gozo, queimo infográficos de palavras mortas na bacia das almas. As cinzas eu misturo com cúrcuma. E semeio no concreto da cidade. Essas expressões vazias de almas não são mais atraentes para as vozes lésbicas de devir manual. O que não está fazendo muito sentido na linguagem para você? Que tipo de linguagem você está recusando constantemente ultimamente? Quais foram as verdades falsas mais surreais depois que o gigante acordou?

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